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Mário Filho, 12/04/1958

Author: Isaque Argolo | Creation Date: 2024-09-25 01:11:14

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A GRANDE SAFRA
— Mário Filho | 12/04/1958 —

1950 ficou como um marco. De fato nunca estivemos mais perto de conquistar um campeonato do mundo. É o que não perdoamos. Quem foi ao Maracaña naquele 16 de julho foi menos para assistir a um jogo do que para participar de um carnaval, o maior que já houvera. Partia-se do princípio de que o escrete das Touradas de Madrid não podia perder para nenhum outro. E a verdade é que tínhamos recebido o aviso com bastante antecedência. O empate com a Suíça ficara definitivamente para trás. Ainda soavam aos nossos ouvidos a marchinha carnavalesca: "Conheci uma espanhola, natural da Catalunha". Do sonho descemos para a realidade dura, talvez dura demais. E o que nos continuava a obcecar era o sonho vivido. Não entendíamos como depois das Touradas de Madrid pudera acontecer o 16 de julho.
E como, para a nossa vaidade, não admitíamos que algum time algum dia tivesse jogado mais do que o escrete brasileiro jogou contra a Espanha, chegamos à conclusão de que nunca mais. Foi por isso que muito brasileiro jurou não assistir mais a uma partida de futebol. Não poucos cumpriram a promessa. Encontramos de quando em quando um ex-torcedor que a simples menção da palavra futebol pede-nos para mudar de assunto. Para èle o futebol morreu em 50 e depois de viver a tarde gloriosa contra a Espanha. Porque se continua a cultivar as Touradas de Madri. Para os saudosistas do Brasil e Espanha só um milagre, e eles não acreditam em milagres, poderia permitir a formação de um escrete igual àquele.
E vamos falar com franqueza melhor do que aquéle tivemos vários escretes. A seleção de 1950 encerrava uma época. Era uma espécie de canto de cisne de uma geração que desaparecia. E que desaparecia incompleta. Domingos da Guia não jogava mais. No lugar dêle tinhamos Juvenal. Não se podía comparar um com o outro. Talvez fosse até melhor dizer que o substituto de Domingos não era Juvenal, era Augusto, já no fim, e que foi disputar o campeonato do mundo contundido, embora o verdadeiro sucessor de Domingos se chamava Nilton Santos, que não jogou. Mas um Juvenal, como beque central mostra um retrocesso.
Ou, pelo menos, exibe uma carestia de jogadores em certas posições. Porque não havia a falta de um Domingos apenas. Um Tesourinha, por exemplo, não passara o bastão a ninguém. Friaça, que foi o ponta-direita de 1950, era um jogador que ia ocupar o lugar de um meia deslocado: Maneca. O fato é que não tínhamos um ponta-direita. Julinho só se consagraria depois. É possível que não se tivesse tomado conhecimento dêle. Em 1950 se formara o escrete à base do Vasco e do São Paulo. O Vasco teve dez jogadores convocados inclusive o veteraníssimo Alfredo II., que jogou contra a Suíça e fez um gol. Era um médio que fora um extrema-direita. Assim não houve a preocupação de formar o maior escrete e sim o escrete que adquirisse conjunto mais fàcilmente.
Mas temos que olhar apenas o escrete que se formou e não o escrete que se poderia formar. O de 1945 era melhor, inclusive no ataque, que em 1950 teve as glórias das "Touradas de Madri". O ataque de 1950 tinha um grande trio atacante: Zizinho, Ademir, Jair, mas o de 1945 não apresentava uma falha: Tesourinha, Zizinho, Heleno, Jair e Ademir. Jair e Ademir formaram a maior ala esquerda daquele Sul-Americano de Santiago do Chile, que poderia ter sido nosso e que, como expressão técnica valeria mais do que o Mundial de 1950, pois tinha a Argentina em pleno apogeu. Perdemos o título contra a Argentina porque fizemos Jaime entrar em campo quase sem poder andar.
1950 era um momento de transição para o futebol brasileiro. Não vimos isso por causa da cortina de fumaça do Brasil e Espanha. O engano vem daí. E o Brasil e Espanha, por mais que nos lisonjeiem as "Touradas de Madrid", foi um jogo falso. Com poucos minutos de jogo havíamos varrido todas as necessidades da Fúria. Fizemos um gol aos três minutos. Com menos de dez minutos. de partida estávamos vencendo por três a zero. Continuamos, porém, a ver no Brasil e Espanha o jogo ideal. Maior vitória que essa e mais bonita conquistamos em 1945 contra a Argentina em São Januário. A Argentina tinha muito mais futebol do que a Espanha e o escore foi igual.
Mas não se tratava de um campeonato do mundo e sim de uma Copa Roca. Era, contudo, uma Copa Roca que, para nós, valia tanto quanto um campeonato do mundo. Desde 1939 que a Argentina nos vencia. No Sul-Americano de Santiago sentimos que podíamos tê-la vencido. E chegou o momento do torcedor brasileiro lavar a alma e levantar a cabeça na Copa Roca. Só que em 1950 quase não nos lembrávamos mais dos seis a dois de São Januário. Já era tempo, também, de esquecermos Brasil e Espanha. Só não o esquecemos porque nos lembramos, até hoje, amargamente, de 16 de julho.
O Brasil e Espanha representa, para todos nós, uma espécie de justificação, embora, recordando-o, nos doa mais o 16 de julho. É como se coçássemos uma ferida. Há um pouco de masoquismo nisso. A grande vitória, como é chamada, não diminui a grande derrota, pelo contrário. Sem o Brasil e Espanha aceitaríamos melhor o Brasil e Uruguai, inclusive como uma contingência. O que nos faz não aceitá-lo é o pressuposto, falso, de que o escrete de 1950 era o maior escrete de todos os tempos. A prova estaria não no 16 de julho, não no empate com a Suíça e nem no Brasil e Iugoslávia e sim no Brasil e Espanha.
E a realidade era outra. O Brasil se preparava como nunca, mas não dispunha de valores para determinadas posições. Não havia a abundância de jogadores que há hoje e que até chega a atrapalhar. Se prescindirmos de posição de quiper que quase sempre não nos deu grandes satisfações, sobretudo em se tratando de escrete brasileiro, pois na maioria absoluta dos casos os nossos goleiros foram melhores como goleiros de times, em cada uma das outras temos jogadores de sobra, numa das maiores safras do futebol brasileiro. E mesmo em relação a goleiros talvez estejamos sendo injustos.
Mas onde só havia um Juvenal, embora houvesse um Pinheiro, novinho, em que não se pensou, temos um Belini, um Pavão, e nem falamos em outros para não estabelecer confusão. Onde se tinha de descobrir um Maneca e na falta deste um Friaça, temos um Garrincha e um Joel, sem contar com um Julinho que, se fosse necessárío, podia ser convocado. E onde só havia um Chico temos Pepe, Canhoteiro e Zagallo. É verdade que se falou em Zizinho e Jair, pelo menos como experiências. Mas sempre se pensou um pouco em futebol com os olhos do passado.
Mesmo assim se volta mais para frente e se vê um Pelé, um Dida, um Moacir, um Mazzola, craques que desabrocham. Tanto que há quem pergunte se um Didi, apesar de todo o futebol que tem, deve ir. Se não é melhor entregar todo o ataque do escrete a esta geração endiabrada de atacantes que surge, quase de repente, consagrando-se às vésperas de um campeonato do mundo, com uma garra, com um coração, com uma fibra e uma gana de gol que num ataque são quase sempre virtudes de um só ou mais virtudes de um só.